Música deste post: Comes Love, Norah Jones
Buenos Aires, 7 de fevereiro de 2002,
Chovia cântaros em Buenos Aires no primeiro dia do feriado bancário pré-pesificação. Já era para estar tudo um caos, com a multidão atônita pelas ruas: seus depósitos bancários, já semi-confiscados desde 1º de dezembro, iriam esfarelar, daí a alguns dias. O temporal bíblico que caiu naquela manhã foi um toque hiperbólico no que já era pandemônio.
Chovia cântaros em Buenos Aires no primeiro dia do feriado bancário pré-pesificação. Já era para estar tudo um caos, com a multidão atônita pelas ruas: seus depósitos bancários, já semi-confiscados desde 1º de dezembro, iriam esfarelar, daí a alguns dias. O temporal bíblico que caiu naquela manhã foi um toque hiperbólico no que já era pandemônio.
Passava das 11 da manhã e o tradicional Café Tortoni, que em 2002 ainda era frequentado por portenhos, estava quase vazio. Dez mesas ocupadas, se tanto. Pouca gente disposta a pagar 3 pesos por um expresso e pelo direito de ler o jornal em paz.
Encharcada até os ossos, em merecia una copita de jerez. Tinha caminhado mais de 10 quadras até o café desde o hotel, na esquina de Reconquista com Tucumán. Tinha chegado a Buenos Aires naquela madrugada e também fui surpreendida pelo feriado bancário. Sequer consegui fazer câmbio para pagar o táxi.
Até a noite noite anterior (quarta-feira), o peso argentino valia um dólar. Naquela manhã de quinta, ninguém sabia quanto ia valer o dinheiro preso nos bancos, quando o movimento fosse normalizado, na segunda-feira. Tinha gente apostando que a moeda americana iria saltar para os três pesos. A especulação comia solta nas ruas.
Troquei dólar a 2,10 pesos, numa loja perto do Tortoni (quando já estava encharcada de chuva e nenhum táxi iria me aceitar). Na esquina seguinte, me ofereceram 2,30.
Quando o sol abriu, segui para San Telmo. Queria um refresco da tensão sob a calma aparente do Microcentro. Não era só o calor. Não era a umidade, como gostam de acusar os portenhos (Lo que mata es la humedad, eles adoram dizer, sempre que se reclama do fio ou do calor em Buenos Aires).
Quando o sol abriu, segui para San Telmo. Queria um refresco da tensão sob a calma aparente do Microcentro. Não era só o calor. Não era a umidade, como gostam de acusar os portenhos (Lo que mata es la humedad, eles adoram dizer, sempre que se reclama do fio ou do calor em Buenos Aires).
Havia algo muito pesado nos ares da capital argentina, muito mais do que a leitura de tantos jornais me faria supor.
Percorri os antiquários na obsessão de encontrar um caleidoscópio. Ora, porque caleidoscópios formam as imagens mais lindas, que nunca mais se repetem, mas sempre são substituídas por outras, tão lindas quanto.
Só que os tempos em Buenos Aires não estavam para caleidoscópios, nem na minha querida Plaza Dorrego. As árvores estavam todas lá, o casario, o aconchego, o silêncio. Mas a cena de crianças pedindo esmolas, algo que não se via antes na cidade, já despontava como o novo normal.
Percorri os antiquários na obsessão de encontrar um caleidoscópio. Ora, porque caleidoscópios formam as imagens mais lindas, que nunca mais se repetem, mas sempre são substituídas por outras, tão lindas quanto.
Só que os tempos em Buenos Aires não estavam para caleidoscópios, nem na minha querida Plaza Dorrego. As árvores estavam todas lá, o casario, o aconchego, o silêncio. Mas a cena de crianças pedindo esmolas, algo que não se via antes na cidade, já despontava como o novo normal.
Em uma mesa ao ar livre do Café Dorrego, um garoto pediu os amendoins servidos junto com meu xerez. Depois dele, uma manada de pombos famintos atacou o que restou...
"Prohibido robar. El gobierno no accepta competencia" (é proibido roubar, o governo não aceita concorrência). A frase estava em muro perto de Parque Lezama, no meu caminho para as empanadas no Bar Brtitanico.
"Prohibido robar. El gobierno no accepta competencia" (é proibido roubar, o governo não aceita concorrência). A frase estava em muro perto de Parque Lezama, no meu caminho para as empanadas no Bar Brtitanico.
De lá, fui ao Caminito, no Bairro de La Boca. Não gosto do lugar, mas estava trabalhando e fazia parte da pauta checar como a área mais turística da cidade estava reagindo à crise.
O Caminito estava desbotado, vazio — turista tem medo de convulsões — e quase todas as casas exibiam placas de "aluga-se quarto" na fachada. O que não mudou foram os motoristas de táxi de Buenos Aires: todos falavam de política com desenvoltura habitual.
Um desses taxistas me perguntou sobre Collor e FHC. Respondo que Collor foi pior que Menem. Ele dá um pinote: "Impossível. Nem que ele fosse o demônio!". Chama-se Jorge Alberto e dirigia táxi em Buenos Aires, mas sonhava com São Paulo, onde viveu por três anos, trabalhando na loja do cunhado.
Um desses taxistas me perguntou sobre Collor e FHC. Respondo que Collor foi pior que Menem. Ele dá um pinote: "Impossível. Nem que ele fosse o demônio!". Chama-se Jorge Alberto e dirigia táxi em Buenos Aires, mas sonhava com São Paulo, onde viveu por três anos, trabalhando na loja do cunhado.
Voltou por conta da euforia, da moeda forte equivalente ao dólar e de um amor pela cidade que, emburrado, deixa transparecer, mas não quer confessar. Agora está com o dinheiro preso no banco e vontade de jogar o carro contra as barricadas metálicas que protegem a Casa Rosada dos manifestantes.
Ao cair da tarde, uma manifestação reuniu cerca de 100 pessoas, em frente ao Palácio de Justicia, logo atrás do Teatro Colón. Querem o impeachment de nove juízes da Suprema Corte. Mais adiante, um grupo de jovens batia latas e sacudia bandeiras vermelhas. Na Calle Defensa, duas senhoras colavam cartazes feitos à mão, chamando para o panelaço do dia seguinte.
Mas o ponto alto daquela quinta-feira foi mesmo a prisão do ex-chefe da Polícia Federal, implicado na morte de cinco manifestantes durante os protestos da madrugada de 19 para 20 de dezembro, quando ocorreu a renúncia do presidente De la Rua.
No dia seguinte (sexta-feira de Carnaval, para os brasileiros) teve panelaço na Praça de Maio. Jorge Alberto, o taxista, tenta me prevenir: na segunda-feira, começa a flutuar o câmbio e as pessoas vão saber, com certeza, quanto vão perder com o confisco dos depósitos. "Cuidado. Ninguém sabe o que pode acontecer nesta cidade".
Ao cair da tarde, uma manifestação reuniu cerca de 100 pessoas, em frente ao Palácio de Justicia, logo atrás do Teatro Colón. Querem o impeachment de nove juízes da Suprema Corte. Mais adiante, um grupo de jovens batia latas e sacudia bandeiras vermelhas. Na Calle Defensa, duas senhoras colavam cartazes feitos à mão, chamando para o panelaço do dia seguinte.
Mas o ponto alto daquela quinta-feira foi mesmo a prisão do ex-chefe da Polícia Federal, implicado na morte de cinco manifestantes durante os protestos da madrugada de 19 para 20 de dezembro, quando ocorreu a renúncia do presidente De la Rua.
No dia seguinte (sexta-feira de Carnaval, para os brasileiros) teve panelaço na Praça de Maio. Jorge Alberto, o taxista, tenta me prevenir: na segunda-feira, começa a flutuar o câmbio e as pessoas vão saber, com certeza, quanto vão perder com o confisco dos depósitos. "Cuidado. Ninguém sabe o que pode acontecer nesta cidade".
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