Se você já navega aqui na Fragata há mais tempo, sabe que sou fã de Ulisses/Odisseu, herói da Guerra de Troia que passou 10 anos na jornada de retorno a sua Ítaca.
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Vathi é a capital da Ilha de Ítaca. Tem 1.700 habitantes |
Aproveitei minha estadia em Cefalônia pra fazer um passeio de barco à ilha de Ulisses, que fica do ladinho. Foi bem emocionante: Ítaca é muito bonita, com suas encostas em rocha muito branca despencando naquele verde/azul do Mar Jônico.
Anote as dicas e, quem sabe, você também não se anima a conhecer a ilha do pop star dos relatos de Homero:
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Minha primeira visão da Ítaca concreta, a Praia de Gidaki |
Esse viagem a Ítaca aí no alto é meio que provocação. É o
título do poema de Konstantinos Kaváfis (1863-1933) que me inspirou todas as viagens
desta vida — e a viagem da vida, é claro.
De tanto visitar ítacas por aí, finalmente fiquei cara a cara com a Ítaca concreta. Ela é uma das menores das Ilhas Jônicas, com seus 96 km² que abrigam 3.600 moradores. Tem uma paisagem belíssima e suas pequenas vilas pesqueiras são exatamente como a mitologia contemporânea descreve uma vila grega à beira-mar.
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Navegando pra mais uma ítaca — desta vez, a Ítaca concreta |
Mas é claro que o nó na garganta desse passeio ficou por conta da lenda. A Ítaca de Ulisses está no mesmo mapa da Troia de Aquiles e Heitor, da Micenas de Perseu e Agamenon, das Termópilas de Leônidas, da Casa Azul de Frida Kahlo e da Chawton de Jane Austen. Enfim, essas e outras ítacas que me põem em movimento.
Mas deixa eu ser objetiva, porque devaneios estradeiros são pessoais e intransferíveis e você, certamente, quer informações concretas.
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O embarque para Ítaca é na Praia de Skala, em Cefalônia |
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A lancha acomoda até 200 passageiros. O deque superior é o mais concorrido |
Como é o passeio à Ilha de Ítaca
A partida para Ítaca é da Praia de Skala, em Cefalônia. Após cerca de uma hora de navegação, a primeira parada é na Praia de Gidaki, que tem uma faixa de areia branquinha e águas de um azul inacreditável. O tempo para o banho de mar é de cerca de 30 minutos.
A segunda escala é na pequenina Vathi, com 1.700 habitantes, a capital da Ilha de Ítaca. A vila fica em uma das margens de uma baía de recorte profundo, um porto muito bem abrigado, que, certamente, foi o grande motivo para que os colonizadores venezianos escolhessem o local para estabelecer a povoação, no Século 16.
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Vathi viveu grande prosperidade no Século 19, graças a seu estaleiro. Os habitantes de Ítaca são famosos como construtores navais desde a Idade do Bronze |
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Odisseu guarda o porto de Vathi |
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Os locais dizem que Ítaca não lota nem no alto verão |
Vathi sempre foi pequenininha, mas viveu dias de grande prosperidade no Século 19, quando abrigava um atarefado estaleiro. Hoje, a vila vive do turismo, que nem é tão grande — Ítaca é muito menos popular do que Zaquintos e Cefalônia e o movimento nas vilas e praias da ilha se resumem aos dias em que recebe passeios de barco, algo como duas vezes por semana, e aos poucos visitantes independentes.
A parada seguinte é na vila pesqueira de Kioni, que tem menos de 150 moradores, casas coloridas herdadas dos venezianos e uma enseada de águas absolutamente cristalinas. Essa é a escala mais longa do passeio, pois coincide com a hora do almoço.
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Nosso almoço em Kioni foi delicioso |
E que almoço, viu? A pasta com frutos do mar que comi em um restaurante do pequeno píer estava deliciosa. Os preços também encantam: a refeição custou € 18 por pessoa, com bebidas.
A última parada em Ítaca, antes do retorno a Cefalônia, é no Cabo Ai Gianni, com belas falésias e as mesmas águas inacreditavelmente azuis e cristalinas de todo o entorno da ilha.
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A parada diante das falésias do cabo Ai Gianni (no alto) e o banho de mar na Praia de Mini Myrtos (no centro e acima) encerra o passeio a Ítaca |
Já de volta a Cefalônia, perto do fim da tarde, a lancha faz uma última parada na Praia de Koutsoupia, apelidada, para fins turísticos, de Mini Myrtos (Myrtos é a praia mais famosa de Cefalônia). É a chance de mais um banho de mar em um cenário que só a Grécia é capaz de proporcionar.
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Adoro navegar. Navegar pra Ítaca, porém, foi muito mais especial |
Esses passeios de barco às demais Ilhas Jônicas são oferecidas por toda parte em Argostoli, geralmente durante a temporada quente (abril a outubro). Não é difícil encontrar uma agência para comprar a escapada.
Os passeios de barco a Ítaca ou Zaquintos saem pela manhã e retornam no final da tarde, no mesmo esquemão que a gente já conhece, com paradas para visitas, banho de mar e almoço.
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A paisagem é linda do começo ao fim do passeio |
Pra mim, porém, colocar os pezinhos na terra (e nas águas) de Odisseu já valeu demais o investimento. Disse que estava perfeitamente feliz no dolce far niente de Cefalônia, mas, vez por outra, apertava o coração lembrar que estava do ladinho de um dos lugares mais importantes da minha cartografia emocional e não veria Ítaca cara a cara.
E foi assim que que o feliz acidente ocorreu: ligamos para o telefone anunciado no cartaz (era domingo e estava tudo fechado) para contratar o passeio a Zaquintos. No dia seguinte (segunda-feira, nosso último dia em Cefalônia), só tinha passeio pra Ítaca. Imaginem como eu fiquei triste.
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Antes do embarque, na Praia de Skala, é preciso trocar o voucher do passeio pelas pulseirinhas que dão acesso à lancha |
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Vathi mantém a arquitetura herdada dos venezianos. A cidade foi totalmente destruída nos terremotos de 1953. Reconstruída, hoje tem as feições preservadas pela legislação de tombamento |
Os preços desses passeios começam na casa dos € 60. Nós pagamos € 85, com transporte privativo entre nossa pousada, em Drapano, e a Praia de Skala, ida e volta.
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Na entrada do Porto de Vathi fica a Ilha do Lazareto (em primeiro plano), que servia de local de quarentena para tripulações desde o Século 17 |
Ítaca é mesmo a ilha de Odisseu?
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Quase pedi um autógrafo à estátua de Odisseu |
Há uma controvérsia se essa Ítaca moderna seria mesmo a ilha de Ulisses/Odisseu. Arqueólogos e historiadores sugerem que a Ítaca homérica seria Cefalônia. Outra corrente aponta Lefkada como a Ítaca de Odisseu.
Mas a teoria mais difundida é que a Ítaca de hoje seja mesmo
o lar de Odisseu. Ela teria sido o centro de uma unidade política, um “Reino Jônico”,
que compreendia também Cefalônia e demais ilhas do arquipélago, durante a Idade
do Bronze (no período micênico).
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Segundo a Odisseia, de Homero, o herói levou 10 anos tentando voltar pra casa |
Corroborando essa teoria, arqueólogos escavaram na ilha diversas moedas da Idade do Bronze com a inscrição “Ítaca” e a efígie de Odisseu.
O que mais importa é que é na moderna Ítaca que a memória de
Odisseu é celebrada. Além do mais, quando a lenda é mais emocionante que os
fatos, publique-se a lenda, dizia aquele personagem de John Ford.
O frio na barriga que eu senti ao ver pela primeira vez as
falésias brancas de Ítaca, ainda no barco, vale por mil tratados arqueológicos:
estive, sim, na terra de Ulisses, o herói que me acompanha desde que eu era
criancinha.
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Olhando as águas cristalinas da enseada de Kioni a gente entende bem porque Odisseu fez tanta força pra voltar pra casa |
Um pouquinho da história de Ítaca
A Ilha de Ítaca é habitada, continuamente, há 6 mil anos. Ela viveu seu apogeu na Idade do Bronze, quando teria sido o centro de um reino que abarcava as demais Ilhas Jônicas, sob influência de Micenas.
A prosperidade e o poder de Ítaca nesse período, há cerca de 3.300 anos, coincide com os relatos de Homero sobre seu governante Ulisses/Odisseu, arguto, grande guerreiro e navegador.
As proezas marítimas, porém, não foram monopólio de Odisseu: Ítaca é, desde sempre, uma terra de intrépidos navegadores, que se destacaram pela exploração do Mediterrâneo e além.
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Pra variar, fiquei apaixonada pelos barquinhos coloridos de Kioni |
Depois disso, a história de Ítaca não é muito diferente do que a do que nos acostumamos a chamar de Grécia. A Ilha foi ocupada pelos romanos no Século 2º a.C e depois assistiu ao mesmo desfile de conquistadores que se seguiu — bizantinos, normandos, otomanos, venezianos...
Em tempos mais recentes (Século 18), Ítaca, assim como as demais Ilhas Jônicas, foi ocupada pela França Napoleônica e, posteriormente, pelos britânicos, que combatiam Napoleão.
Transformada em protetorado dos ingleses, Ítaca só voltaria a ser politicamente grega em 1864, junto com suas irmãs jônicas — 43 anos após a declaração de Independência da Grécia.
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Ítaca e as demais Ilhas Jônicas passaram pelas mãos de diversos conquistadores estrangeiros |
Helena era casada com Menelau, rei de Esparta, irmão de Agamenon, rei da poderosíssima Micenas, a grande potência helênica na Idade do Bronze (muito antes do esplendor de Atenas). Há evidências históricas sobre o conflito, inspirado muito mais na disputa pela localização estratégica de Troia.
Um dos personagens mais marcantes da Ilíada é Odisseu, rei de Ítaca, descrito como grande guerreiro, navegador e estrategista. Seria dele, por exemplo, a ideia de construir o famoso Cavalo de Troia, que permitiu aos gregos a entrada nas muralhas da cidade a conquista final.
Depois da guerra, Odisseu só quer voltar pra casa e essa jornada é contada na Odisseia. Nosso herói havia cegado o ciclope Polifemo, protegido por Poseidon, deus dos oceanos — quando se vai fazer uma viagem marítima, esse é bem o cara que você não quer irritar. O resultado é que Poseidon enviou todas as pragas náuticas pra naufragar Odisseu.
Tempestades, monstros, sereias traiçoeiras, teve de tudo no caminho de Odisseu, até que ele chega à Ilha de Ogígia (que seria a atual Ilha de Gozo, em Malta), onde reinava a ninfa Calipso. Apaixonada pelo herói, ela retarda sua partida por sete anos.
Finalmente, os deuses do Olimpo se apiedaram de Odisseu. Hermes, Zeus e Atena asseguraram o retorno de Odisseu a Ítaca. No caminho, ele ainda teria tido tempo de fundar cidades como Lisboa e Nápoles — sempre digo que ele e Hércules disputam o título de maior urbanista da mitologia.
As ilhas gregas na Fragata Surprise
Hidra
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