Ulisses — sim, o cara da Odisseia — tem sido um guia de turismo bem presente na minha vida.
Minhas grandes inspirações pra viajar sempre vieram das músicas, do cinema e dos livros. Beatles, Jane Austen, Ricardo Coração de Leão, García Lorca são alguns queridos que já me levaram pela mão, mais de uma vez, em jornadas deliciosas. Mas ninguém me acompanhou tanto por aí quanto Ulisses.
Outro dia, relendo trechos que sempre me encantaram, me peguei contabilizando minhas viagens inspiradas na Odisseia (e Ilíada, também) e percebi que pelo menos seis dos meus roteiros foram desenhados com a colaboração do relato de Homero.
Das ruínas de Troia à ilha de Ítaca — passando por Malta, Lisboa e Nápoles — eu também tenho uma pequena odisseia pra contar. Uma jornada que ainda não terminou e que veio sendo construída aos poucos, como me ensinaram os versos de Konstantínos Kaváfis:
Seguindo os passos de Ulisses — que passou dez anos tentando voltar pra casa — eu venho completando minha própria odisseia devagarzinho, totalmente encantada com as belezas que compõem o mapa dessa aventura.
Veja minha jornada real pelos lugares da Odisseia:
Minha Odisseia — Pelo mundo nos passos de Ulisses
Capítulo 1
Delfos: onde tudo começa
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| Nada importante na Grécia era decidido antes da consulta ao Oráculo de Delfos |
Não, Delfos não aparece na Odisseia — ou, pelo menos, não no fragmento da obra que chegou aos nossos dias. Mas o grande centro espiritual da Grécia Antiga é o ponto de partida perfeito para esta jornada, porque era para lá que convergiam governantes e chefes militares antes de qualquer campanha armada: ninguém ia à guerra sem ouvir as previsões e os conselhos da Pitonisa.
Por quase doze séculos — dos tempos arcaicos aos primeiros séculos do cristianismo — gregos, romanos e até cristãos primitivos vinham perguntar tudo ao oráculo, de casamentos a decisões de Estado.
Nas versões pós-homéricas, Ulisses também teria vindo até aqui antes de partir para Troia. Fez oferendas, pediu conselho, tentou agradar Apolo. O mesmo fizeram Agamêmnon de Micenas, Menelau de Esparta e Calcante, o adivinho oficial dos helenos na campanha.
Segundo autores gregos tardios, até Príamo, rei de Troia e pai de Páris e Heitor, consultou o oráculo sobre o destino da cidade — e Apolo teria avisado que Troia estava destinada a cair. Se ele deu crédito ao deus Sol, já não dá pra dizer. O que se sabe é que Príamo também não acreditaria nas posteriores — e similares — profecias de sua filha Cassandra, amaldiçoada por Apolo a enxergar o futuro com nitidez e a nunca ser levada a sério.
Visitei Delfos duas vezes, em 2012 e 2024.
Sobre Delfos:
Delfos, o centro do mundo
Dicas práticas de Delfos
Museu Arqueológico de Delfos na Grécia
Capítulo 2
Esparta, o estopim
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| A Esparta contemporânea costuma ficar fora das rotas turísticas |
Esparta é território de Leônidas, não de Ulisses — que provavelmente nunca passou por lá (embora seu filho Telêmaco tenha vindo perguntar pelo pai, como conta Homero). É também a sede do poder de Menelau, rei da Casa dos Atreus e irmão de Agamêmnon de Micenas.
E não dá para contar essa história sem passar por Esparta: foi daqui que Helena, mulher de Menelau, partiu com Páris, acendendo o pavio da confusão toda.
Esparta atingiu seu auge entre os séculos 6º e 4º a.C., quando seu exército de hoplitas — a infantaria pesada — e a rígida disciplina militar fizeram da cidade a mais temida potência terrestre da Grécia. Dominou o Peloponeso, comandou a Liga do Peloponeso e derrotou Atenas na Guerra do Peloponeso, garantindo prestígio por gerações.
A Esparta de hoje é uma cidadezinha de cerca de 32 mil habitantes, quente e seca, onde uma estátua de Leônidas — pudicamente vestido com um saiote quase romano (os espartanos combatiam nus ou apenas com a couraça) — vigia a entrada do Estádio Municipal.
Esquecida pela maioria dos roteiros turísticos — a Grécia tem tantos lugares extraordinários que Esparta acaba parecendo modesta demais no conjunto — a cidade preserva um sítio arqueológico e um museu que está entre os mais antigos do país.
Estive rapidamente em esparta duas vezes, em 2012 e 2024.
Capítulo 3
Micenas: onde a guerra ganhou forma
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| Ainda hoje é possível sentir a majestade de Micenas, a grande metrópole helena na Idade do Bronze |
As muralhas ciclópicas de Micenas, centro do poder político, militar e naval dos helenos na Idade do Bronze, são o cenário oficial da decisão de invadir Troia. Foi aqui que Agamêmnon reuniu suas forças, sacrificou o que não deveria — a própria filha, Ifigênia — e tomou decisões que o acompanhariam até a morte.
Chefe da Casa dos Atreus, Agamêmnon, rei de Micenas, era o comandante supremo da coalizão grega que marchou contra Troia. Depois de receber o pedido de ajuda do irmão mais novo — o monarca traído Menelau, rei de Esparta pelo casamento com Helena — coube a ele costurar alianças, convocar exércitos e manter unidos chefes orgulhosos como Aquiles, Odisseu, Ájax e Diomedes, homens que não obedeceriam a qualquer líder. É também Agamêmnon quem comanda a frota que parte de Áulide rumo a Troia.
Atravessar a monumental Porta dos Leões, na cidadela de Micenas, foi uma das maiores emoções da minha vida de viajante. Estive ali duas vezes e nunca esqueço o impacto daquelas muralhas na subida ao Mégaron, no topo da cidade — e a vista quase infinita para o mar e as montanhas da Argólida, como se o próprio mundo micênico ainda respirasse ali.
Visitei Micenas em 2012 3 2024, nas duas viagens que fiz à Grécia,
Sobre Micenas:Micenas, terra de gigantes
10 atrações históricas no Peloponeso
Troia: o marco zero da errância
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| Troia, a cidade que caiu pela paixão de um príncipe |
Troia é o fim da guerra e o começo de todas as viagens. Ulisses parte daqui acreditando que em poucos dias veria Ítaca. O destino — ou os deuses — tinha outros planos.
A visita a Troia é uma das melhores coisas que vivi. Não porque o sítio arqueológico às margens do Estreito de Dardanelos (o Helesponto da Antiguidade) ofereça grandes espetáculos visuais. A paisagem é árida, as ruínas são discretas, e nada ali convida a selfies. Mas as pedras dispersas, os muros baixos e o solo queimado pelo sol guardam uma força que só as palavras conseguem tecer: é o relato homérico, vivo há três milênios, que conduz a visita.
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| Diz a lenda que o Cavalo de Troia foi obra de Ulisses |
O verbo poderoso reergue muralhas e devolve os heróis à cena, diante do mesmo mar onde aportaram as “negras naus” lideradas pelos Atridas. Em Troia, quem canta é a Musa — e a alma, leve, voa.
Visitei Troia em 2012.
Sobre Troia:
Ruínas de Troia na Turquia - o poder da palavra
8 sítios arqueológicos pra sua lista de viagens
Capítulo 5
Sicília: monstros, feiticeiras e o mar que engole navios
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| Conta a lenda que os ciclopes viviam nas encostas do Vulcão Etna, na Sicília |
A Sicília é praticamente o parque temático da Odisseia.
Polifemo, o ciclope, vivia por aqui, As ilhas de Eólo ficam logo ao lado, E Cila — o monstro marinho de seis cabeças, devoradora de marinheiros — ainda parece vigiar o Estreito de Messina, de mãos dadas com a voragem de Caríbdis, o redemoinho capaz de engolir navios inteiros.
Minha estadia na Sicília foi muito mais amena que a de Ulisses: Taormina, suspensa entre mar e montanha, Palermo, inesperada e arrebatadora, os templos gregos de Agrigento — os mais espetaculares fora da Grécia — e a culinária deliciosamente simples fizeram da viagem uma alegria.
Mas foi Odisseu quem me trouxe até aqui. Obrigada, velho amigo, por mais essa dica preciosa de roteiro.
Visitei a Sicília em 2014/2015, um roteiro de inverno.
Roteiro pela Sicília - com paradinhas em Nápoles e Roma
Nápoles: um legado de Ulisses
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| O ilhote onde hoje está o Castel dell'Ovo seria o local da fundação de Nápoles por Ulisses |
Nápoles é mais um enorme motivo de gratidão a Ulisses. A cidade — talvez a mais arrebatadora que já vi — jura ter sido fundada por ele. O herói da Odisseia rivaliza com Hércules no papel de Niemeyer/Lúcio Costa da Antiguidade: entre uma façanha e outra, sempre arrumavam tempo para seu lado arquiteto-urbanista 😊.
A antiga Partênope teria nascido quando Ulisses, livre das Sereias (mas não do caos), aportou na Campânia e fincou raízes no mesmo ilhote rochoso de Megaride onde hoje repousa o Castel dell’Ovo. Foi ali, segundo a lenda, que ele lançou os alicerces da futura e gloriosa Nápoles.
A cidade ganhou o nome da sereia Partênope, que se lançou para a morte ao fracassar em arruinar Ulisses com seu canto.Visitei Nápoles em 2007 e em 2014. E vivo cheia de planos para voltar.
Sobre Nápoles:
O que fazer em Nápoles - 10 razões para amar a cidade
Dicas práticas de Nápoles
Os Quartieri Spagnoli de Nápoles - uma aventura neorrealista
Não conhecer Nápoles é desperdiçar a vida
Capítulo 7
Herculano: mais uma cidade que Ulisses (talvez) fundou
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| Herculano, congelada no tempo pelas cinzas do Vesúvio |
Se Nápoles reivindica Ulisses como fundador, Herculano faz o mesmo — e com uma ousadia ainda maior. As tradições romanas mais tardias contavam que o herói, ao navegar pelo Golfo de Nápoles depois de escapar das Sereias, teria aportado ali e fundado Heracleia, que mais tarde se tornaria Herculano. A cidade teria recebido o nome do outro urbanista mitológico, Hércules, mas a pedra fundamental, dizem, quem lançou foi o rei de Ítaca.
A arqueologia, claro, conta outra história. A Herculano que
visitamos hoje não nasceu do mito, mas se congelou nele. Enterrada pela erupção
do Vesúvio em 79 d.C., quando uma onda piroclástica transformou casas, ruas e
vidas em carvão e silêncio, ela preserva um instante cristalizado da Roma
imperial. Andar por suas ruas é atravessar um portão para outro tempo — tão
firme e vívido que às vezes parece que alguém acabou de sair da sala ao lado.
Em meio a mosaicos, pórticos e casas surpreendentemente
intactas, pensar que heróis antigos teriam passado por este golfo não parece
exagero. O Mediterrâneo tem dessas coisas: mistura bravamente o que aconteceu
com o que poderia ter acontecido.
Minha visita a Herculano — muito mais contemplativa que a de
Pompeia — teve esse sabor. Ao contrário da cidade vizinha, onde o impacto vem
da escala, Herculano emociona pela intimidade: salas que ainda guardam afrescos
vibrantes, madeiras carbonizadas que sobreviveram dois milênios, pedaços de
cotidiano esquecidos.
Herculano é um desses lugares onde a fronteira entre história e lenda não importa.
Visitei Herculano (e sua irmã Pompeia) no finzinho de 2014.
Sobre Herculano:
Herculano, a "irmã" menos famosa de Pompeia
Como visitar Pompeia e Herculano a partir de Nápoles
Malta: a doce/amarga prisão em Ogígia
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| Ulisses e Calipso, de Rebeca Matte, no Museu Nacional de Belas Artes do Chile |
Conta Homero que Ulisses naufragou da costa de Gozo e assim
acabou enredado na teia de Calipso, até que o deus Hermes trouxesse a ordem de Zeus
para que a ninfa o deixasse seguir sua viagem de volta a Ítaca.
Uma caverna na Baía de Ramla, na Costa Norte de Gozo, é apontada pela
lenda como sendo o lar de Calipso. Era um local bem concorrido entre os
visitantes, até ser interditada ao público por risco de desmoronamento — destino
que teve a mais famosa atração turística de Gozo, a Janela Azul, um arco
de pedra no litoral Noroeste da ilha, que ruiu em 2017.
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| Ilha de Gozo, em Malta |
Gozo é a segunda ilha mais importante do país-arquipélago que é Malta, pequeninho, mas cheio de atrações bacanas, como a famosa LagoaAzul, na Ilha de Comino, praias, cidades amuralhadas, como Mdina e as Três Cidades, e templos megalíticos mais antigos do que as pirâmides do Egito.
Na ilha de Gozo, a atração mais conhecida é a cidade
murada conhecida como Cittadella, onde brilha a Catedral da Assunção, do Século
17.
Visitei Malta e a Ilha de Gozo em 2019.
Sobre a Ilha de Gozo:
Malta: Ilha de Gozo e a Cittadella
Lisboa: rumo aos limites do mundo
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| Lisboa olha para o Tejo e o Tejo olha para o mar |
A cidade seria o fruto de uma grande aventura de Ulisses, que teria se aventurado além das Colunas de Hércules (Gibraltar) rumo ao mar exterior (o Atlântico), até o fim do mundo conhecido. É nesse contexto que o historiador Estrabão (64 a.C.– 24 d.C.) atribui a ele a fundação da cidade.
(Fernando Pessoa, Ulisses)
Sempre que olho para o Tejo, imagino o rei de Ítaca subindo o rio e — como se não bastassem todos os outros caminhões de motivos — me apaixono um pouquinho mais por Lisboa.
Mani: a porta da Casa de Hades
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| Península de Mani: montanhas, mar e muita história |
Mani também é o local onde autores pós-homéricos apontam estar localizada a entrada do Reino de Hades — a morada dos mortos — mais precisamente na caverna de Tênaro, na pontinha extrema da península.
Segundo a Odisseia, Ulisses desce ao Reino dos Mortos para aconselhar-se com Tirésias, o profeta cego, sobre o caminho de volta a Ítaca (uma espécie de dica de viagem de Circe). No texto de Homero, porém, a entrada da Casa de Hades não fica em Mani, mas nos confins do mundo conhecido, ou simplesmente onde o mundo acabava — daí a travessia das Colunas de Hércules, a chance de fundar Lisboa no Atlântico, e não no Mediterrâneo, que era sua praia.
Historicamente, a Península de Mani é uma terra assolada por piratas, por disputas entre clãs (como as vendetas corsas) e pelos klephts — bandoleiros que viviam nas montanhas e se tornaram aguerridos guerrilheiros no combate ao Império Otomano, o que fez de muitos deles heróis da Independência da Grécia.
A paisagem montanhosa e árida de Mani despenca num mar de azul profundo, margeada por pequenos vilarejos pesqueiros. No interior, cidades erguidas em pedra nua lançam um tom dourado sobre o panorama.
Com apenas 18 mil habitantes, Mani encanta com sua rusticidade e seu ar de Grécia autêntica.
E, se você quer um cenário cem por cento homérico, a Ilíada sugere que foi na pequena Githio — porto dominado por Esparta — que Páris e Helena passaram sua primeira noite juntos, antes de embarcarem para Troia.
Roteiros criativos - Githio e a Península de Mani, uma Grécia quase desconhecida
Capítulo 11
Cefalônia: quase em casa
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| A deslumbrante Cefalônia pode ter sido a Ítaca de Homero |
Foi só um soluço do núcleo da Terra, porque o resto da minha estadia não teve mais solavancos, reais — como é marca da ilha — ou figurados.
Muitos estudiosos apontam Cefalônia como a verdadeira Ítaca de Homero — há inclusive uma lenda de que a Ítaca real, ali do lado, teria sido separada da ilha maior por um terremoto, embora não haja qualquer evidência concreta disso.
O que dá pra dizer é que a paisagem hipnótica de Cefalônia — montanhas vertiginosas sobre um mar deslumbrante, litoral recortado, pontuado por grutas e portos estreitos — merece perfeitamente ser cenário de uma narrativa épica.
E eu aposto que Ulisses adorava tomar banho de mar naquelas praias, das mais perfeitas que encontrei na Grécia.
Estive em Cefalônia em maio de 2024.
Dicas de Cefalônia, onde a Grécia é mais azul
Ilhas gregas: como chegar a Cefalônia
Hospedagem em Cefalônia: pousada boa, bonita e barata
Onde comer em Cefalônia
Capítulo 12
Enfim, Ítaca
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| Falar o quê, né? Só oi, velho amigo, finalmente eu vim te ver |
E foi quase um acidente: eu já tinha quase desistido de visitar a ilha de Ulisses quando um cartaz numa loja fechada na orla de Argostoli, em Cefalônia, me apresentou o número de telefone de uma agência que promovia passeios até lá.
A Ítaca de verdade é uma Grécia aconchegante, colorida e nada grandiloquente. Um lugar onde enseadas quase íntimas acolhem barquinhos de pesca e janelas entreabertas parecem piscar para os poucos visitantes.
Olhando aquela ilha nada solene, dá pra entender perfeitamente por que um herói épico lutaria por dez anos para voltar, depois de outros dez travando uma guerra — eu levei mais de sessenta anos para chegar lá.
A Ítaca real não tem a agitação de destinos turísticos consagrados. Ainda bem. Mas, como Troia, é um lugar de fazer a alma voar.
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(Johnny Mercer, Moonriver)
Minha lista começa por Corfu (Grécia), a antiga Esquéria, terra dos feácios, onde Ulisses finalmente encontra hospitalidade e descanso antes do retorno. Outra aventura no meu mapa afetivo é atravessar o Estreito de Messina — eu fui pra Sicília de avião, agora quero navegar — para ver se Cila e Caríbdis vão dar o ar da graça.
Outro lugar que vem piscando no meu radar é a Ilha de Djerba, terra dos Lotófagos na Odisseia, onde crescia o fruto do esquecimento — quem provava dele perdia a vontade de voltar pra casa. A Tunísia, aliás, está no topo da minha lista de desejos: quero ver Cartago, a cidade de Aníbal — outro cara que também me inspira uma bela odisseia.

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